sábado, 18 de dezembro de 2010

Machado de Assis e a perda da inocência (II)




Uma coisa, no entanto, que me impressiona bastante nos romances é a extrema solidão de seus protagonistas: Brás Cubas tem um enterro melancólico, para dizer o mínimo. Onze amigos e uma chuva renitente apenas acompanham seu cortejo fúnebre. Foi "solteirão, como ele mesmo disse, a vida inteira; possuiu e não possuiu Virgília. Rubião morreu com a amizade somente do cão, após ter sido rodeado de interesseiras companhias. Bentinho não chega a falecer, é verdade; mas acaba, de certa forma, sepulto nas lembranças de um passado de não-realização, numa casa reproduzida tal qual a de sua infância. Acaba sozinho, sem filho e sem mulher, embora nunca tivesse sentido que possuíra os dois alguma vez. Além disso, os três são consumidos por desejos insatisfeitos: Cubas queria Virgília e o sucesso do seu nome; Rubião queria Sofia e quase tudo nesta vida: "Olha para si, para as chinelas (...), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu: e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade"; Bentinho queria Capitu.

A ideia, ao que me parece, especialmente quando leio Dom Casmurro, é que a idade adulta é tão-somente uma infância desprotegida e solitária, em que o desejo de reter para si alguma pessoa ou memória é o próprio causador da perda. Lembro-me aqui de uma das odes de Ricardo Reis, a qual me parece muito próxima desse sentimento:

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois, pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio
Pagã triste com flores no regaço."

A vida é esse rio, no qual parece que jamais entramos. Estamos sempre à beira, ouvindo e vendo-o correr, eterno devir heraclitiano, enquanto não enlaçamos as mãos em nada e em ninguém. Nada realmente nos pertence. Nós, crianças adultas, enquanto poucas flores suavizam-nos os momentos, estamos à beira, perdidos entre o ser e o não-ser, entre o desejo e a insatisfação, entre a posse e a eterna não-realização.

Parece-me sempre que é essa desilusão que vai crescendo em Machado de Assis e em mim, enquanto o leio. Eu também já não sou aquele adolescente azevediano, a quem não aborrecia "estas histórias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu". Para Marx, seria a desilusão que daria à luz o homem livre, e talvez seja assim. Para o Cristo, é a verdade que liberta. Pode ser também. Mas, para mim, e talvez para Machado, é a verdade de que o homem não é verdadeiramente livre que dá origem à desilusão, e isso é tudo.

Aquele "movimento ao canto da boca" vai então diminuindo, e uma triste e desconsolada constatação - de que essa é a eterna condição humana - sobressai nos textos do Machado de Assis do fim do século XIX e início do XX. Coloquemos "A chinela turca" ao pé de "Pai contra mãe", "D. Benedita" ao pé de "Missa do Galo", Memórias Póstumas de Brás Cubas ao pé de Memorial de Aires; o movimento que vemos, da esquerda para a direita em cada exemplo, é o da boca saindo do sorriso suave e sarcástico para o repouso numa expressão nem irônica, nem cínica - apenas cética e pesssimista. A ironia jamais deixará Machado; mas ela diminui gradativamente, até ceder lugar à pura desilusão e colocar-se em segundo plano.

A perda da inocência é a marca da vida adulta. No entanto, a adultez não é mais que uma infância desolada. Sós entramos no mundo, sós saímos dele, e conosco nada levamos. Viemos do pó, e ao pó voltaremos. Resta-nos somente a autoironia, essa flor débil que nos perfuma os momentos enquanto estamos ao pé do rio que jamais para ou volta atrás, correndo impassível para algum lugar além dos deuses.

"Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando um para o outro. (...) Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho o nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal podiam se consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos."

Leonardo Ramos.

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