terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Espelho

O fantasma de seu pai apareceu. Não fazia ainda três horas que o havia enterrado. Passara todo o velório pensando que, não fosse o ataque cardíaco fulminante, ele o teria matado com as próprias mãos. Mal conseguia conter-se na vontade quase incontrolável de atirar o caixão ao chão com toda a força de seu ódio e, tomando o cadáver pela cabeça, batê-la repetidamente no chão, até que conseguisse cavar ali mesmo o buraco onde jogaria o corpo de seu pai.

O fantasma de seu pai apareceu, e antes que ele pudesse gritar “covarde!”, as mãos fantasmagóricas, com uma força não-natural, agarraram-se a seu pescoço, impedindo completamente sua respiração. Mas nem isso ele conseguia perceber, tão grande era o ódio e a vontade de matar o fantasma de seu pai. Erguendo-se da cama onde estava deitado num movimento frenético e violento, tentou alcançar o rosto do fantasma de seu pai, em vão. Os golpes zuniam pelo ar, e numa dança macabra, ele se debatia incontrolavelmente, nem tanto pelo sufocamento, mas pela vontade incontrolável de matar o fantasma de seu pai.

O fantasma de seu pai mantinha as mãos firmes em seu pescoço e o olhar impassível, como sempre tivera. Na verdade, seu pai era um homem resolvido. Sofrera bastante com a morte da mulher, que se suicidara na noite de seu aniversário de trinta e três anos, com veneno que ela mesmo preparou para si, numa taça de vinho tinto caríssimo, logo após ter brindado à saúde de seu marido aniversariante. No entanto, ele prosseguiu a vida, criando seu filho único com carinho e devoção. Quase nada fazia seu pai perder a calma. Era irônico como o filho, sim, era irascível e violento como uma besta, como um urso de três metros de altura provocado por horas a fio. Uma besta que, inutilmente, tentava matar o fantasma de seu pai.

O fantasma mantinha o olhar impassível e as mãos firmes sobre o pescoço dele, e sua serenidade contrastava com o ódio do filho. Estranhamente, ele sentia esse ódio por seu pai desde os dez anos, desde que sua mãe havia morrido. Quando chegara o dia de seu próprio aniversário de quarenta anos, com vontade resoluta, invadira o quarto de seu pai, logo ao amanhecer, com a intenção de o matar sufocado. Não pôde conter sua ira ao ver que seu pai havia morrido em algum momento durante a noite. O criado impediu que ele agredisse o cadáver de seu pai.

Contudo, o fantasma de seu pai estava a pouco de o estrangular. E não havia ainda três horas que o enterrara, tentando controlar seu ódio por vê-lo morto antes que ele mesmo o matasse. A briga seguia. Os golpes cantavam quando varavam o ar ou quando acertavam a mobília. Suas mãos estavam sangrando. Já estava a poucos instantes de morrer sufocado. No entanto, os movimentos violentos que fazia seriam capazes de deslocar os braços do fantasma de seu pai, se isso fosse possível. Mas, então, ninguém ainda ouvira falar que um filho tivesse conseguido deslocar os ossos dos braços do fantasma de um pai.

E o fantasma de seu pai o jogou contra a parede com tal força que o barulho foi ouvido pelo criado, que ficou de ouvidos alertas a fim de ouvir se o barulho se repetiria ou se fora sua imaginação. E lá estava o homem, oprimido contra a parede pelo fantasma do próprio pai, enquanto tentava gritar “covarde!” e o matar. Interessante, desde os dez anos tinha vontade de matar seu pai. Mas nunca tivera essa coragem, até o dia de seu aniversário de quarenta anos, quando, com vontade resoluta, invadira o quarto de seu pai, encontrando-o, todavia, já morto. Quanta frustração encontrara naquele quarto mórbido! Isso o podia ver nos seus olhos já vermelhos e saltando das órbitas o fantasma de seu pai, que mantinha o olhar impassível e as mãos firmes sobre o pescoço dele.

No seu último desesperado movimento na tentativa de matar o fantasma de seu pai, o homem correu, de uma parede a outra do enorme quarto, como se quisesse jogar o fantasma de seu pai contra a parede. Engraçado, nesse momento ele se lembrou de um passeio, poucos meses após a morte de sua mãe, que se suicidara na noite do aniversário de seu pai, logo após fazer um brinde à saúde dele, com uma taça de vinho tinto envenenado que ela mesma havia preparado. No passeio, num pequeno momento de descuido, ele se perdera de seu pai. Pouco mais de três minutos se passaram, mas para ele foram quase trinta anos. Quando ele reencontrou seu pai, correu e pendurou-se ao seu pescoço, chorando, beijando-o e pedindo que não o deixasse sozinho nunca mais. Seu pai mantivera o rosto impassível e, num abraço terno, prometera que isso jamais aconteceria outra vez. Era o mesmo rosto impassível do fantasma de seu pai que ele encarava agora, segundos antes de se chocar com violência incrível contra o espelho que ficava na outra parede do enorme quarto, na tentativa de jogar contra a parede o fantasma de seu pai.

Desta vez, o criado, que estava atento a ouvir outro barulho que pudesse se repetir, se não fosse coisa de sua imaginação, ouviu claramente o estrondo amedrontador do choque do homem contra o espelho, ouviu o barulho do vidro se estilhaçando, ouviu também um estrondo, como o estrondo de um urso de três metros de altura batendo contra o armário e, por último, ouviu o barulho surdo do armário caindo sobre alguma coisa como um corpo.

Ao chegar ao enorme quarto, o criado desejou jamais ter trabalhado naquela casa, apesar de seu patrão ser um homem cortês, amável e pacífico. O filho de seu patrão estava esmagado sob o pesado armário de mogno que sua mãe ganhara para o enxoval de seu bebê. Com muito esforço, conseguiu remover o armário de cima do homem. A cena era horrível. Seu crânio estava esmagado, e a massa cerebral, entre vermelha e cinzenta, dava a impressão de uma barata pisada. Os cacos do espelho lhe desfiguraram a face, fazendo um corte desde o topo direito da testa, passando pelo olho direito, quase completamente fora da órbita e fendido, jorrando sangue e líquido intraocular, passando pelo nariz, já cianótico e quebrado, e pelos lábios, contraídos horrivelmente, como se quisessem gritar “covarde!” e não pudessem, até sua garganta, que jorrava sangue copiosamente.

Ele foi enterrado no mesmo dia de seu pai, no fim da tarde, sob comentários do criado de ter sido vítima de sua epilepsia, que, tomando-lhe o ar, o fez girar freneticamente pelo enorme quarto, esbarrar nos móveis, quebrar o espelho e, por último, desmaiar sobre o armário. Este, apesar de ser enorme e de mogno, após o choque do corpo do homem, que também era enorme e forte como um urso de três metros de altura, caiu sobre ele, esmagando seu crânio de forma grotesca. Mas, na verdade, isso era mentira. Ele havia sido assassinado pelo fantasma de seu pai, que ele havia enterrado não fazia três horas, chorando copiosamente de ódio por não ter podido matá-lo ele mesmo.

Leonardo Ramos.

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