quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Sobre a fórmula de ganhar dinheiro com livros




Minhas visitas à Livraria Leitura cumprem sempre um itinerário fixo: passo rapidamente pela entrada, onde jazem serelepes e coloridos os livros que eu chamaria de fast-read - leituras rápidas, divertidas (não para mim, devo confessar) mas que estragam a saúde mental se usados imoderadamente; sigo, então, para a prateleira da Teoria da Literatura, lugar em que eu posso tratar a literatura com a dignidade e respeito que ela merece; logo depois, a visita à Filosofia é obrigatória, já que sem a epistemologia não haveria Teoria da Literatura.

Pois bem, ontem, indo a essa livraria e cumprindo o itinerário de sempre, eu deparei com um livro coloridinho demais para a área da Teoria da Literatura. Julguei-o, claro, estrangeiro, e tive, tenho de admitir, impulsos xenofóbicos. Logo fui a ele, pensando em intimidá-lo para que me dissesse qual era seu interesse por ali, se estava com os documentos em dia, porque estava com aquela capa chamativa etc. Tomando-o pela gola da camisa e o levantando ante meus olhos, vi que se tratava de um livro sobre Shakespeare - o Zeus do meu Olimpo Literário - e, receoso de que ele me dissesse: "Você não sabe com quem está mexendo, rapaz! Vou reportar essa atitude deplorável aos seus superiores universitários...", eu fiz o movimento de deixá-lo de volta à prateleira, pedindo desculpas pela minha grosseria e justificando que eu o tomei por outra pessoa.

Mas, enquanto eu o repunha na estante, li no título a palavra código. Não, eu não estava errado! Um livro chamado O Código Shakespeare jamais - eu disse JAMAIS! - estaria na Teoria da Literatura. Voltei a erguê-lo pelo colarinho e o revistei à procura de seus documentos: realmente era um estrangeiro. Aquele era um livro filho dos fast-read, escritos para entreter os incautos leitores de fins de semana ociosos. A contra-capa o denunciara: "Um livro recheado de mistério, intrigas..." e outras coisas que não ouso mencionar; o nome da editora, "Best Seller", dispersou qualquer dúvida de que aquele livro estava no lugar errado.

O tal livro segue a fórmula de sucesso já utilizada por Dan Brown e outros: uma história controversa com uma reviravolta em cada capítulo - quando Aristóteles, em sua Poética, dizia (e eu concordo) ser necessária apenas uma - frases de efeito, trechos engraçadinhos, vez ou outra um momento picante, e, no final, uma revelação bombástica retirada do bolso do autor - para não dizer doutro lugar, o que escandalizaria meus hóspedes. Então, o editor faz uma capinha coloridinha, com o nome do autor bem grande, no alto, e o nome do livro no meio com uma fonte bizarra - tudo para chamar a atenção do cliente. Não é à toa que esses livros ficam logo à porta, perto dos caixas: é para facilitar a vida do comprador, que não precisaria se aprofundar demais na livraria nem se demorar na procura. Afinal, a vida anda muito corrida, e não temos tempo a perder no conhecimento de outros tipos de livros. Então, que se deixe logo à mostra o que mais interessa.

Vários motivos me levam ao meu ódio xenofóbico contra esse tipo de livro: em primeiro lugar, a constatação triste e consternante de que pessoas que jamais leram Shakespeare lerão esse livro; em segundo, a certeza de que essas mesmas pessoas, após lerem a merda do tal código, jamais lerão o Bardo; e, por último, o fato de eu ter de ouvir tais pessoas discutir comigo como se o que foi escrito ali é uma verdade dogmática, mas inabalável que o firmamento, mais resistente que o diamante, mais certo que o nascer do sol.

Antes desse livro, um outro, A Conspiração Franciscana, já me tinha feito perder a paciência. Li as primeiras cem páginas dele, por indicação de um grande amigo, que queria debater o livro comigo. Foi uma das piores leituras da minha vida! Nunca vou esquecer os momentos de terror sofridos... Esse meu amigo, no entanto, soube separar o que é ficção - quase tudo que está além dos nomes dos personagens - do que é real. Outros, porém, levaram o livro tão a sério que não era possível dizer coisa diversa do que foi escrito. Era como se eu estivesse "defendendo" os franciscanos por ter sido um, um dia...

É claro que ninguém tem de gostar de literatura como eu gosto. Nunca desejaria isso! Mas é necessário ler livros de ficção como livros de ficção, e livros de fast-read como livros a serem usados com moderação e crítica. Mas que eu saí da livraria pensando num atentado terrorista que eliminasse todos aqueles livros, ah!, eu pensei...

Leonardo Ramos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Espelho

O fantasma de seu pai apareceu. Não fazia ainda três horas que o havia enterrado. Passara todo o velório pensando que, não fosse o ataque cardíaco fulminante, ele o teria matado com as próprias mãos. Mal conseguia conter-se na vontade quase incontrolável de atirar o caixão ao chão com toda a força de seu ódio e, tomando o cadáver pela cabeça, batê-la repetidamente no chão, até que conseguisse cavar ali mesmo o buraco onde jogaria o corpo de seu pai.

O fantasma de seu pai apareceu, e antes que ele pudesse gritar “covarde!”, as mãos fantasmagóricas, com uma força não-natural, agarraram-se a seu pescoço, impedindo completamente sua respiração. Mas nem isso ele conseguia perceber, tão grande era o ódio e a vontade de matar o fantasma de seu pai. Erguendo-se da cama onde estava deitado num movimento frenético e violento, tentou alcançar o rosto do fantasma de seu pai, em vão. Os golpes zuniam pelo ar, e numa dança macabra, ele se debatia incontrolavelmente, nem tanto pelo sufocamento, mas pela vontade incontrolável de matar o fantasma de seu pai.

O fantasma de seu pai mantinha as mãos firmes em seu pescoço e o olhar impassível, como sempre tivera. Na verdade, seu pai era um homem resolvido. Sofrera bastante com a morte da mulher, que se suicidara na noite de seu aniversário de trinta e três anos, com veneno que ela mesmo preparou para si, numa taça de vinho tinto caríssimo, logo após ter brindado à saúde de seu marido aniversariante. No entanto, ele prosseguiu a vida, criando seu filho único com carinho e devoção. Quase nada fazia seu pai perder a calma. Era irônico como o filho, sim, era irascível e violento como uma besta, como um urso de três metros de altura provocado por horas a fio. Uma besta que, inutilmente, tentava matar o fantasma de seu pai.

O fantasma mantinha o olhar impassível e as mãos firmes sobre o pescoço dele, e sua serenidade contrastava com o ódio do filho. Estranhamente, ele sentia esse ódio por seu pai desde os dez anos, desde que sua mãe havia morrido. Quando chegara o dia de seu próprio aniversário de quarenta anos, com vontade resoluta, invadira o quarto de seu pai, logo ao amanhecer, com a intenção de o matar sufocado. Não pôde conter sua ira ao ver que seu pai havia morrido em algum momento durante a noite. O criado impediu que ele agredisse o cadáver de seu pai.

Contudo, o fantasma de seu pai estava a pouco de o estrangular. E não havia ainda três horas que o enterrara, tentando controlar seu ódio por vê-lo morto antes que ele mesmo o matasse. A briga seguia. Os golpes cantavam quando varavam o ar ou quando acertavam a mobília. Suas mãos estavam sangrando. Já estava a poucos instantes de morrer sufocado. No entanto, os movimentos violentos que fazia seriam capazes de deslocar os braços do fantasma de seu pai, se isso fosse possível. Mas, então, ninguém ainda ouvira falar que um filho tivesse conseguido deslocar os ossos dos braços do fantasma de um pai.

E o fantasma de seu pai o jogou contra a parede com tal força que o barulho foi ouvido pelo criado, que ficou de ouvidos alertas a fim de ouvir se o barulho se repetiria ou se fora sua imaginação. E lá estava o homem, oprimido contra a parede pelo fantasma do próprio pai, enquanto tentava gritar “covarde!” e o matar. Interessante, desde os dez anos tinha vontade de matar seu pai. Mas nunca tivera essa coragem, até o dia de seu aniversário de quarenta anos, quando, com vontade resoluta, invadira o quarto de seu pai, encontrando-o, todavia, já morto. Quanta frustração encontrara naquele quarto mórbido! Isso o podia ver nos seus olhos já vermelhos e saltando das órbitas o fantasma de seu pai, que mantinha o olhar impassível e as mãos firmes sobre o pescoço dele.

No seu último desesperado movimento na tentativa de matar o fantasma de seu pai, o homem correu, de uma parede a outra do enorme quarto, como se quisesse jogar o fantasma de seu pai contra a parede. Engraçado, nesse momento ele se lembrou de um passeio, poucos meses após a morte de sua mãe, que se suicidara na noite do aniversário de seu pai, logo após fazer um brinde à saúde dele, com uma taça de vinho tinto envenenado que ela mesma havia preparado. No passeio, num pequeno momento de descuido, ele se perdera de seu pai. Pouco mais de três minutos se passaram, mas para ele foram quase trinta anos. Quando ele reencontrou seu pai, correu e pendurou-se ao seu pescoço, chorando, beijando-o e pedindo que não o deixasse sozinho nunca mais. Seu pai mantivera o rosto impassível e, num abraço terno, prometera que isso jamais aconteceria outra vez. Era o mesmo rosto impassível do fantasma de seu pai que ele encarava agora, segundos antes de se chocar com violência incrível contra o espelho que ficava na outra parede do enorme quarto, na tentativa de jogar contra a parede o fantasma de seu pai.

Desta vez, o criado, que estava atento a ouvir outro barulho que pudesse se repetir, se não fosse coisa de sua imaginação, ouviu claramente o estrondo amedrontador do choque do homem contra o espelho, ouviu o barulho do vidro se estilhaçando, ouviu também um estrondo, como o estrondo de um urso de três metros de altura batendo contra o armário e, por último, ouviu o barulho surdo do armário caindo sobre alguma coisa como um corpo.

Ao chegar ao enorme quarto, o criado desejou jamais ter trabalhado naquela casa, apesar de seu patrão ser um homem cortês, amável e pacífico. O filho de seu patrão estava esmagado sob o pesado armário de mogno que sua mãe ganhara para o enxoval de seu bebê. Com muito esforço, conseguiu remover o armário de cima do homem. A cena era horrível. Seu crânio estava esmagado, e a massa cerebral, entre vermelha e cinzenta, dava a impressão de uma barata pisada. Os cacos do espelho lhe desfiguraram a face, fazendo um corte desde o topo direito da testa, passando pelo olho direito, quase completamente fora da órbita e fendido, jorrando sangue e líquido intraocular, passando pelo nariz, já cianótico e quebrado, e pelos lábios, contraídos horrivelmente, como se quisessem gritar “covarde!” e não pudessem, até sua garganta, que jorrava sangue copiosamente.

Ele foi enterrado no mesmo dia de seu pai, no fim da tarde, sob comentários do criado de ter sido vítima de sua epilepsia, que, tomando-lhe o ar, o fez girar freneticamente pelo enorme quarto, esbarrar nos móveis, quebrar o espelho e, por último, desmaiar sobre o armário. Este, apesar de ser enorme e de mogno, após o choque do corpo do homem, que também era enorme e forte como um urso de três metros de altura, caiu sobre ele, esmagando seu crânio de forma grotesca. Mas, na verdade, isso era mentira. Ele havia sido assassinado pelo fantasma de seu pai, que ele havia enterrado não fazia três horas, chorando copiosamente de ódio por não ter podido matá-lo ele mesmo.

Leonardo Ramos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Playlist da semana

Esta semana, vai um playlist com mulheres no vocal. Por quê? Porque são as mulheres que fazem este mundo habitável e encantador...

1) The Gathering - Broken Glass



2) Land of Talk - Some are lakes



3) Massive Attack - Teardrop



4) PJ Harvey - The Piano



Hermes.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Ninfa

Eu vi no amanhecer a própria Galhardia
a figurar no ser duma mulher austera:
tinha na face o olhar da poderosa Hera,
ela emanava luz que a luz mais alvadia...

Ao vê-la se assomar, como se assoma o dia,
eu súbito senti olímpica atmosfera:
beleza e perfeição - fulgor que não se altera,
humana divinal que às eras transcendia.

E eu a cismar ali, silencioso e grave,
ouvindo o sussurar do doce mar de Atenas,
tentava capturar a cena, inquieta ave:

ela a passar; Apolo em suas melenas,
enquanto, a lhe beijar o lábio, a brisa suave
fazia estremecer d'inveja as açucenas...

Leonardo Ramos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fantasmagoria

"Por isso vão passar perante a turbamulta
Como abrupta avalanche, enorme catapulta,
Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios
Que cavaram no globo horrendos precipícios,
Os vícios imortais, que infestam tribos, greis,
Povos e gerações, seitas, templos e reis
E que são como a lava obscura da cratera
Que subterraneamente a tudo se invetera."
Cruz e Sousa, O Livro Derradeiro

Sorri quando caí; porque queria
Ter alma suspendida e sem cuidado
De coisa alguma que me houvesse ao lado;
Pois era tanta a morte que subia
Que nada me haveria machucado
Enquanto eu caía.

E enquanto à minha volta eu ouvia
Os vultos de fantasmas celerados
Cuspindo e vomitando seus pecados,
A lua lhes velava a vilania.
Mas olhos não os tinha tão velados
Enquanto eu caía.

E a vertigem que então descia
Por sobre a minha mente abandonada
Deixou a minha alma apavorada;
Não digo pela fantasmagoria,
Mas pela luz que andava degredada
Enquanto eu caía.

E o tropel horrendo que crescia
Diante desta face atordoada
Soava-me imensa gargalhada,
Tal qual Satã gozando em uma orgia...
E avançava a horda arreliada
Enquanto eu caía.

Fantasmas! Quem talvez se lembraria
Do vosso rosto humano delicado
Ao vê-lo assim, assaz desfigurado,
Atrás de diabólica histeria?
Que anjo mal vos houve aprisionado
Enquanto eu caía?

Leonardo Ramos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Carvalho

Quando nasceu, ninguém pôde perceber que não tinha boca. Eurídice estava transportada de felicidade de dar à luz seu primeiro e talvez único filho, dada sua idade avançada. O médico, preocupado com que o menino não chorasse, bateu bastante nele. Só então deu-se conta do fato: não tinha boca. Nunca havia visto isso antes. A ausência total de qualquer relato sobre essa doença na literatura o fez tomar uma decisão: deixar mãe e filhos ligados pelo cordão umbilical. O pequeno não poderia comer, pois não tinha boca, e o cordão serviria de acesso do alimento através da mãe.

O pai mal pôde conter sua euforia quando viu o bebê. Era a sua cara. Era, em tudo, igual a ele, menos a boca, que não tinha. Mas Orfeu não chegou a perceber que seu filho não tinha boca. Tomou-o por um menino bonzinho, que não chorava por nada, e que tinha uns olhos vivos. “É a minha cara”, repetia o pai, orgulhoso. “Vai ser carpinteiro, como eu; casar-se e ter um filho lindo, como eu”.

Pai e mãe jamais entenderam que o filho não tinha boca. Socava-lhe a mãe o seio naquele espaço contínuo entre o nariz e o pescoço onde deveria estar... a boca. Obviamente, o bebê não sorvia nada, e a mãe o julgava satisfeito. O médico lhe havia explicado que o menino nascera sem boca, mas ela não escutou. Nem mesmo enxergava o defeito no filho.

A mãe, porém, alimentava-se bastante. Sentia muita fome, e parecia jamais estar saciada. Emagrecia desde que dera a luz. Mas isso não importava. Importava o filho primeiro e talvez o único. O pai se enchia de orgulho de ver o filho “forte”, o que queria dizer gordo. Aquela criança, agora com quatro anos, pesava trinta quilos. Mas não falava. Seus pais nunca se preocuparam com isso. “É quieto assim mesmo”, dizia a mãe. “Puxou o pai...”

Com oito anos, aprendeu a andar. Era lindo vê-lo trôpego e gordo, ensaiando seus primeiros passos. Contudo, parecia não ter muito gosto por andar. Não saía de perto da mãe, e isso a enchia de orgulho. “Não pode ir a lugar nenhum sem que eu vá junto!”, dizia ela às amigas. Era assim, de fato. Mas o fato era que o menino estava ligado à mãe.

Havia outros meninos, na vizinhança, que vinham visitá-lo sempre. Mas a criança não dava muita atenção a eles. Parecia não se importar com sua presença; os meninos brincavam, corriam, pulavam, quebravam as coisas, e o menino só olhava. O pai cutucava seus amigos, dizendo: “É um observador. Vede como brinca: brinca de estudar os amigos...”.

Na verdade (preciso dizer), ao menino não fazia sentido algum a fala. Não causava nele nenhuma impressão. Ele escutava, mas era tudo barulho. De fato, a única coisa que ele percebia era que aquelas pessoas eram parecidas com ele, exceto por aquela abertura esquisita entre o nariz e o pescoço. Nele, havia apenas um espaço contínuo. Nem maxilar, nem queixo, nem lábios. Um espaço contínuo entre o nariz e o pescoço.

Quando completou dez anos, o médico, que os visitava toda a semana, cortou o cordão umbilical. Isso foi pelo fato de que o menino já estava com cinquenta quilos. Obeso. O médico temia por sua saúde. Os pais, não. Para eles, o menino era perfeito. E que olhos expressivos! Negros, muito negros, ou, antes, ausentes completamente de cor. Quando o médico desligou mãe e filho, o menino parecia muito bem, apesar do peso extremo.

No dia seguinte, ei-lo andando. Andava e tocava tudo, tentando achar, em todas as coisas, um orifício, um espaço. Encontrou um: a porta da rua, que estava sempre aberta. (Orfeu e Eurídice não gostavam de lugares fechados; recintos assim lembravam caixão, morte...). O menino saiu sob a fala do pai: “Vai, meu pequeno; vai brincar”. O pequeno nunca mais voltou.

Orfeu e Eurídice não deram, jamais, falta do filho. Sentiam falta de alguma coisa, mas era um sentimento vago, como se a casa estivesse muito fechada. Mandaram fazer mais duas janelas e uma porta no meio. A falta passou. Tanto as janelas quanto a porta voltadas para um pequeno jardim que cultivavam no fundo da casa. Cada qual – Orfeu, à esquerda e Eurídice sentada à sua direita – ficava numa janela, às tardes, olhando para o carvalho que secava mais atrás.

O menino estava com quinze anos. Havia cinco morava na rua. Não propriamente na rua: no esgoto, numa ruína, ou em buracos de sítios despovoados. Gostava do espaço. Acho que era feliz. Não tenho certeza, pois não sorria. Nunca. Mas gostava de olhar. Um dia, um homem rude cismou com ele, porque não parava de olhá-lo. O homem talvez se chamasse Ares. Ares perguntou-lhe o que havia; como o rapaz não lhe respondesse, espancou-o, pensando que o menino troçava com ele. “Fala! Fala!”, gritava o homem rude, enquanto batia. Mas como um cordeiro que se cala diante de seu tosquiador, ele não abriu a boca. Não tinha boca.

E, já com vinte anos, estava quase seco. Não pesava mais que vinte e três quilos. Como estava sempre em um espaço diferente, nunca era conhecido ou reconhecido. Não podia ser relembrado, porque lhe perguntavam o nome, mas ele não dizia nada. Não tinha boca. Achavam-no idiota, e o deixavam logo em seguida. Um dia, porém, tropeçou num cadáver de um indigente, que havia se matado cortando a garganta com um pedaço de vidro. O rapaz tateou o pescoço do mendigo, depois a boca, semi-aberta num aparente sorriso de gozo. Achou a boca daquele homem (que, provavelmente, se chamava Apolo) a coisa mais linda que já tinha visto. Viu sua imagem no caco de vidro. A superfície côncava e refletora daquele objeto fez com que ele sentisse ainda mais a diferença entre eles: Apolo tinha boca; ele, não tinha boca.

Pegou, então, do vidro que jazia na mão de Apolo e, medindo três dedos abaixo do nariz, passou com força a ponta aguda do caco, abrindo seu próprio pescoço. A agonia, antes da morte, durou até às nove e meia da noite de seu vigésimo ano de vida. Ele, no entanto, sorria, e o sangue, borbulhando, produzia aquilo que podemos chamar de seu primeiro som. Parecia que dizia “eu... eu... eu...” Seus pais se orgulhariam se pudessem ver ali o seu único e talvez primeiro filho.

Leonardo Ramos.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Playlist da semana

Hoje o playlist será ensolarado. Mas de um sol menos agressivo que o destes dias...

1) Wilco - Sky blue sky



2) Iron & Wine - Carousel



3) Sigur Rós - Agaetis Byrjun



4) Elbow - Fugitive Motel



Hermes.

Olhos

Toda era plena a luz do meio-dia,
e um ser angelical juntou-se a mim.
Então, a luz do sol me parecia
se encarcerar no olhar do querubim.

E, de repente, tudo o que eu sabia
era o perfume doce do jasmim
e a bem-aventurança da harmonia
de arcanjos a brincar pelo Jardim.

Não lembro exatamente o que dizia,
mas lembro seu suave sussurrar...
Sem perceber que o tempo se esvaía

enquanto eu contemplava aquele olhar
– intenso como o de Hera! –, eu não sentia
quem cativou o sol me cativar.

Leonardo Ramos.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Machado de Assis e a perda da inocência (II)




Uma coisa, no entanto, que me impressiona bastante nos romances é a extrema solidão de seus protagonistas: Brás Cubas tem um enterro melancólico, para dizer o mínimo. Onze amigos e uma chuva renitente apenas acompanham seu cortejo fúnebre. Foi "solteirão, como ele mesmo disse, a vida inteira; possuiu e não possuiu Virgília. Rubião morreu com a amizade somente do cão, após ter sido rodeado de interesseiras companhias. Bentinho não chega a falecer, é verdade; mas acaba, de certa forma, sepulto nas lembranças de um passado de não-realização, numa casa reproduzida tal qual a de sua infância. Acaba sozinho, sem filho e sem mulher, embora nunca tivesse sentido que possuíra os dois alguma vez. Além disso, os três são consumidos por desejos insatisfeitos: Cubas queria Virgília e o sucesso do seu nome; Rubião queria Sofia e quase tudo nesta vida: "Olha para si, para as chinelas (...), para a casa, para o jardim, para a enseada, para os morros e para o céu: e tudo, desde as chinelas até o céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade"; Bentinho queria Capitu.

A ideia, ao que me parece, especialmente quando leio Dom Casmurro, é que a idade adulta é tão-somente uma infância desprotegida e solitária, em que o desejo de reter para si alguma pessoa ou memória é o próprio causador da perda. Lembro-me aqui de uma das odes de Ricardo Reis, a qual me parece muito próxima desse sentimento:

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois, pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio
Pagã triste com flores no regaço."

A vida é esse rio, no qual parece que jamais entramos. Estamos sempre à beira, ouvindo e vendo-o correr, eterno devir heraclitiano, enquanto não enlaçamos as mãos em nada e em ninguém. Nada realmente nos pertence. Nós, crianças adultas, enquanto poucas flores suavizam-nos os momentos, estamos à beira, perdidos entre o ser e o não-ser, entre o desejo e a insatisfação, entre a posse e a eterna não-realização.

Parece-me sempre que é essa desilusão que vai crescendo em Machado de Assis e em mim, enquanto o leio. Eu também já não sou aquele adolescente azevediano, a quem não aborrecia "estas histórias de amor, velhas como Adão, e eternas como o céu". Para Marx, seria a desilusão que daria à luz o homem livre, e talvez seja assim. Para o Cristo, é a verdade que liberta. Pode ser também. Mas, para mim, e talvez para Machado, é a verdade de que o homem não é verdadeiramente livre que dá origem à desilusão, e isso é tudo.

Aquele "movimento ao canto da boca" vai então diminuindo, e uma triste e desconsolada constatação - de que essa é a eterna condição humana - sobressai nos textos do Machado de Assis do fim do século XIX e início do XX. Coloquemos "A chinela turca" ao pé de "Pai contra mãe", "D. Benedita" ao pé de "Missa do Galo", Memórias Póstumas de Brás Cubas ao pé de Memorial de Aires; o movimento que vemos, da esquerda para a direita em cada exemplo, é o da boca saindo do sorriso suave e sarcástico para o repouso numa expressão nem irônica, nem cínica - apenas cética e pesssimista. A ironia jamais deixará Machado; mas ela diminui gradativamente, até ceder lugar à pura desilusão e colocar-se em segundo plano.

A perda da inocência é a marca da vida adulta. No entanto, a adultez não é mais que uma infância desolada. Sós entramos no mundo, sós saímos dele, e conosco nada levamos. Viemos do pó, e ao pó voltaremos. Resta-nos somente a autoironia, essa flor débil que nos perfuma os momentos enquanto estamos ao pé do rio que jamais para ou volta atrás, correndo impassível para algum lugar além dos deuses.

"Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dois velhos sentados, olhando um para o outro. (...) Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho o nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal podiam se consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos."

Leonardo Ramos.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Machado de Assis e a perda da inocência - Prólogo




Caros visitantes,

Este albergue foi criado para que eu pudesse compartilhar com os peregrinos minhas experiências estéticas desta vida - que, afinal, é o único sentido possível para ela. Nesse intuito, eu tento respeitar o fato de que todos temos vidas corridas, e de que nem sempre temos paciência para ler textos enormes.

No entanto, desta vez extrapolarei esse zelo para colocar aqui um texto meu que me é muito importante.

Machado de Assis é o principal escritor de prosa brasileiro, para mim. O maior deles, na minha opinião. E meu interesse artístico-literário deve muito ao bruxo do Cosme Velho, porque foi através dele que descobri que a arte, muito mais do que caminho de expressão, é possibilidade de síntese da vida.

Quero dizer, então, que publicarei aqui, em alguns capítulos, para tornar a leitura um pouco mais fácil, um texto que escrevi para um concurso da Prefeitura de Belo Horizonte que se intitulava "Ensaios Universitários". No seu primeiro ano, esse concurso homenageava Machado de Assis, por ser seu centenário de morte (2008). Eu aproveitei a oportunidade de compartilhar meu entusiasmo por sua obra ao mesmo tempo que eu sabia - modéstia às favas - que poderia escrever um bom texto, dado o meu envolvimento com essa mesma obra literária.

O tal texto me rendeu o segundo lugar - outra vez! - no concurso, cujo prêmio foi R$ 1.500,00 em forma de cheque-livro. Como podem imaginar, consegui "engordar" bastante minha tão-amada biblioteca.

Se for possível, então, caros amigos, acompanhem essas postagens. Com ele eu dedico este sítio ao maior escritor brasileiro. Ainda deixando a modéstia de lado, o texto é um dos poucos meus com os quais eu me sinto completamente à vontade, sem aquele sentimento de arrependimento que me envolve na maioria das coisas que escrevo.

Amanhã, então, postarei o primeiro capítulo. Espero que gostem tanto deste texto quanto eu.

Abraços,
Leonardo Ramos.

Machado de Assis e a perda da inocência (I)




Dom Casmurro chegou-me às mãos quando eu tinha apenas treze anos. Nessa época, pode ser que eu me identificasse menos com aquele narrador um tanto ácido e desiludido do que com o poeta do bonde que lhe dera o apelido. Eu respirava ares de adolescência romântica, que duraram até meus vinte anos, ou um pouco mais; com Álvares de Azevedo eu consumia os dias em fogosas visões de pálidas virgens, lânguidas, vaporosas, fantasmáticas, que, como em todas as paixões idealizadas, em nada correspondiam àquelas menininhas tão cheias de vida com quem me apaixonava.

Eu escrevia, e escrevia poemas mais românticos que o próprio Romantismo, se é que isso era possível. Eu não podia, então, entender muito daquela ironia, aquele "movimento ao canto da boca" que rondava as páginas do romance. Muito do que se lê faz reverberar na alma as vivências passadas, e ali não havia assim tanto passado. No entanto, a leitura foi prazerosa. Ao fim do livro, restou-me um certo sentimento vago, uma melancolia estranha que, segundo eu pensava, não poderia vir de uma obra realista.

Giremos depressa os ponteiros do relógio: eis-me com vinte e cinco anos. Idas e vindas, seminário franciscano, uma tentativa abortada de estudar as Letras, trabalhos aqui e acolá, muitos amores platônicos e dois bastante reais trouxeram-me a essa idade, quando eu me reencontrei com Bentinho. Já não era mais o adolescente romântico; a filosofia havia me desiludido bastante, mas não mais do que a vida o fizera. Senti que lia outro livro: Bentinho entrou-me a parecer muito mais esperto do que da primeira vez. Ele não me soou mais como um menino ingênuo, tragado pelo amor sem poder se defender da ressaca dos olhos de Capitu; mas como um advogado engenhoso, perspicaz, que me conseguira convencer na primeira leitura de que ele era a vítima naquela história.

Depois veio o Quincas Borba. O mundo, que parecia girar em torno da minha existência romântica parou. De repente, eu me dei conta de que o homem é que gira em torno deste mundo que, segundo Schopenhauer, é vontade, desejo eterno e, por isso, insaciável. A inocência se perdera; a adultez chegara e, com ela, o ceticismo. Mas permaneceu comigo aquela melancolia que assomaba do fundo de toda ironia machadiana. Após o riso causado por ela, os lábios voltavam ao normal, e o gosto amargo permanecia na boca.

Mas de onde viria essa melancolia? Brás Cubas deu-me a pista: "Trata-se de uma obra difusa, (...) não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio." Lendo as suas memórias póstumas, tive a confirmação daquela tristeza miúda, suave e quase imperceptível que me pedia humildemente licença para se achegar um pouco mais quando eu lia Dom Casmurro. E foi exatamente no capítulo em que Brás Cubas se encontra com seu antigo companheiro de colégio, o Quincas Borba, que me veio a confirmação. Antes, porém, de encontrar o filósofo do Humanitismo, Cubas havia visto um outro colega, que era ministro, e a ideia de se tornar um ministro também lhe ocupa o pensamento: "Recordei aquele companheiro de colégio, as correrias nos morros, as alegrias e travessuras, e comparei o menino com o homem, e perguntei a mim mesmo por que não seria eu como ele". Instantes após, esbarra com Quincas, que lhe deixa uma impressão ruim e que, no capítulo posterior, se despede de Cubas com um abraço. Eis a cena esclarecedora: "E dizendo isso, abraçou-me com tal ímpeto que não pude evitá-lo. Separamo-nos finalmente, eu a passo largo, com a camisa amarrotada do abraço, enfadado e triste. Já não dominava em mim a parte simpática da sensação, mas a outra. Quisera ver-lhe a miséria digna. Contudo, não pude deixar de comparar outra vez o homem de agora com o de outrora, entristecer-me e encarar o abismo que separa as esperanças de um tempo da realidade de outro tempo..."

É a constatação da idade adulta. Invariavelmente, os adultos relembram-se da fase de criança/adolescente com uma nostalgia desbragada, quando, em crianças, queriam somente crescer. O amadurecimento é, para as crianças, a conquista da liberdade. Mas, conquistando-a, querem voltar à meninice. Por quê? Justamente porque, quando se chega à "maturidade", a liberdade entra a ser um volume descomunal, incômodo, que não se deixa carregar em seu peso insuportável, que não se pode guardar num armário ou esconder embaixo da cama. Ela só estorva. O que fazer com ela, então? É preciso usá-la, mas não sabemos como...

Ficamos com a impressão de que a liberdade é um presente de grego. Ela traz, dentro de si, qual Cavalo de Troia, a nossa própria destruição. Parece-nos um paradoxo: somos livres, e essa liberdade nos aprisiona. E não é disso que trata o conto "Igreja do Diabo"? O homem, escolhendo Deus, escolhe a bondade. No entanto, sub-repticiamente, pratica a fraude, a opressão, a mentira e tudo o mais; vem o Diabo, pregando a sua doutrina, prometendo ao homem todos os prazeres: ei-lo convertido à igreja de Satanás. Mas, às escondidas, pratica a caridade. É possível entender? "Que queres tu? - diz Deus - é a eterna condição humana".

E a eterna condição humana é pender entre o desejo, essa necessidade imperiosa, e a liberdade. É o Humanitismo, uma mistura extraordinária de pessimismo schopenhaueriano com darwinismo social. Ele resume a eterna busca humana não só pela sobrevivência, como também pela ânsia de reconhecimento, de glória e de aplausos: "Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas." A ironia e o cinismo contidos nessa frase, nesse lema do Humanitismo é a marca de Machado nos seus três romances mais celebrados: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, como nos contos de Papéis Avulsos.

Razão

Não é por teu olhar iluminado,
tua tez suave, ou tua face amena,
por me doares tua voz serena
ou mesmo por teu corpo imaculado;

nem por estares onde tenho estado,
nas vivas cores das melhores cenas,
no beijo que alivia minhas penas,
no enleio que me cerca de cuidado.

Se dizem que, no amor dos corações,
não há sequer a sombra do bom senso,
se é tão contrário a si, como em Camões,

no meu amor, adiro a tal consenso:
pois mesmo havendo todas as razões
para te amar, toda razão dispenso.

Leonardo Ramos.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Playlist da semana

Depois de um fim de semana convalescente, o espírito fica naturalmente mais leve. E será preciso energia para trabalhar mais esta semana adentro dezembro. Happylist!

1) Beirut - A sunday smile



2) Little Joy - Unattainable



3) Radiohead - Optimistic



4) Doves - There goes the fear



Leonardo Ramos.

sábado, 11 de dezembro de 2010

The long and winding road



The long and winding road
That leads to your door
Will never disappear
I've seen that road before
It always leads me here
Lead me to your door

The wild and windy night
That the rain washed away
Has left a pool of tears
Crying for the day
Why leave me standing here
Let me know the way

Many times I've been alone
And many times I've cried
Anyway you'll never know
The many ways I've tried

But still they lead me back
To the long winding road
You left me standing here
A long long time ago
Don't leave me waiting here
Lead me to your door

But still they lead me back
To the long winding road
You left me standing here
A long long time ago
Don't keep me waiting here
Lead me to your door


______________________

Esta é, para mim, a mais bela música que o mundo pop produziu. Paul conseguiu resumir nessa canção e nessa letra a melancolia que rege as relações interpessoais. Ele já havia feito isso em Eleanor Rigby, mas aqui a mensagem é menos direta, mais imagética. A longa e sinuosa estrada que leva às portas das pessoas não é um caminho que se simplesmente escolhe seguir; é preciso que aquela pessoa que conhece bem o itinerário decida ensinar como percorrê-lo.

The long and winding road parece um último pedido do Paul de reconciliação para uma relação desgastada - senão com todos os Beatles, ao menos com o John. Mas é uma tentativa de reencontro desengonçada, cheia de queixas e de mágoas. Esta estrofe:

Many times I've been alone
And many times I've cried
Anyway you'll never know
The many ways I've tried


demonstra bem a reclamação de quem se sentiu abandonado quando acreditou tentar fazer de tudo para que a separação não acontecesse. Essa estrofe está na versão de estúdio, tanto do álbum Let it be quanto do Let it be... Naked. Mas nesse vídeo que encima a postagem, retirado do filme Let it be, o Paul canta o seguinte:

Many times I've been alone
And many times I've cried
Anyway you've always know
The many ways I've tried


o que parece ser não mais apenas uma queixa, mas uma acusação: "Você sempre soube o quanto eu tentei...", o que, em outras palavras, parece dizer: "Você nunca deu a mínima para o que eu sinto."

Não quero entrar aqui em discussões beatlemaníacas inúteis, de quem foi o "culpado" pelo término da banda mais sensacional de todos os tempos, na minha opinião. Isso não importa mais. Só quem fez parte daquele processo é que pode dizer como foi - e, ainda assim, não haverá jamais uma versão definitiva ou "verdadeira" dos fatos. Os fatos ocorrem diferentemente para cada pessoa, e a verdade absoluta não existe.

Mas essa música serve como espelho de inúmeros fracassos em relacionamentos - de amizade, de amor, de família... e desses longos e tortuosos caminhos que nem sempre queremos percorrer, e de itinerários que algumas vezes não nos deixam conhecer.

But still they lead me back to the long winding road...

Hermes.

P.S.: A versão do álbum Let it be é muito bonita, com todos aqueles arranjos de cordas que o Phill Spector colocou. Mas, para mim, a do Let it be... Naked é muito mais bela, ainda que deixe transparecer todos as falhas de execução - o piano desencontrado com a bateria, o baixo descompromissado de John... desencontros que eram realmente o retrato de uma banda se desfacelando.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

música

certa luz que me aclara
nesses olhos teus
um dia cinza de silêncio
por sobre nossas cabeças se abre
mas tu és uma gota
que vai descendo sobre a face minha
até ferver meu peito
e gelar minhas mãos
não quero vibrar teus tímpanos com o movimento
de meus lábios
quero tanger cordialmente a corda do teu coração
com aquela música quente que salta
da minha boca
e molha a tua
e escorre pelos teus olhos que me matam
sem querer

Leonardo Ramos.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Estrangeiro

Minha cabeça dói. É por lutar
a ver se alcanço em mim qualquer lembrança
da terra que seria minha herança,
do sítio onde devia ser meu lar.

Meu pensamento é pássaro a voar;
a mente é campo de desesperança
no qual há um pinheiro sem pujança,
onde essa ave insiste em não pousar.

Talvez seja demais, mas me angustia
sentir-me tanto, e tanto deslocado
que, mesmo estando exposto à luz do dia,

não posso ter jamais iluminado
razão alguma que me explicaria
o que me trouxe aonde eu tenho estado.

Leonardo Ramos.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Saudade

(Trilha sonora obrigatória: My Foolish Heart, by Bill Evans)



Saudade é como a areia da ampulheta:
No mesmo instante em que preenche um vazio
Cria outro.

É como o assobio do vento
Num fim de tarde frio,
Quando cada barulho parece um murmúrio.

É como a sentinela sobre a torre:
Atende a cada ruído
Na esperança de que seja alguém.

É como o eco de um caudaloso rio
Correndo nas entranhas de um labirinto
Sem dele jamais sair.

É como ser devorado pelo deus
E continuar vivo
Para voltar a ser devorado.

É como no mito de Orfeu:
Eurídice está ali,
Mas pode desvanecer num olhar.

É uma ausência presente,
Uma solidão acompanhada,
É como ver quem não se pode ver.

Leonardo Ramos.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Mímesis




Ando vagando neste labirinto,
ao qual pertenço, desde que nasci.
Tem sido meu grilhão e minha casa,
e minha salvação e danação.

Ali me assiste horrendo Minotauro,
que dei à luz como meu companheiro.
Ele me nutre de meu próprio sangue,
da carne que acabou de me arrancar.

A cada encontro a besta me sugere
que sou o labirinto em que me perco,
a minha própria pedra de tropeço,

sou estes muros contra os quais me bato,
sou a vertigem a rondar meus olhos,
sou o monstro que me há de devorar.

Obs.: Este poema recebeu o prêmio de segundo colocado no Concurso Literário "Flor do Lácio", do Sitraemg, em 2008.

Leonardo Ramos.

Playlist da semana

Segunda-feira + chuva x enxaqueca = melancolia.

1) A lua não está aí para nos dar seu clarão, mas aí está Beethoven para ecoar nossa tristeza. Esse primeiro movimento da Sonata Claire de Lune tem pouquíssima dinâmica. Ela é executada quase toda pianissimo e jamais chega ao fortissimo. O tom é menor e a harmonia é um tanto dissonante. Graves e agudos sempre contrastando. Metáfora da vida.



2) A cabeça baixa, os olhos fechados e as costas curvas só demonstram que Bill Evans estava mais interessado em si mesmo que nos ouvintes quando executava seu cool jazz. E é por não se preocupar com a plateia que a sua interpretação tem tanto impacto. Em I loves [sic] you, Porgy, ele faz o piano chorar e reclamar, tentando transferir para o instrumento o sentimento que ele talvez não quisesse assumir como dele. Privilégio dos bons músicos!



3) Day is done é a música em que o Nick Drake conseguiu colocar toda a angústia da(s) falta(s). A falta começa a aparecer nos fins de tarde e se instala de vez durante a noite. Talvez ela se manifeste com mais força logo após um momento de intensa alegria. Acho que é a isso que ele se refere na seguinte estrofe: "When the party's through/ seems so sad for you:/ didn't do the things you meant to do,/ now there's no time to start anew,/ now the party's through." As repetições não são acaso, Nick Drake era um poeta. Elas acentuam o efeito angustiante da rotina. É a certeza de que você passará por tudo isso de novo amanhã... Escolhi a versão demo porque é apenas o Drake e seu violão e porque, esteticamente, acho que ela está mais de acordo com o clima da letra.



4) Um clássico do rock, Comfortably Numb é a música que se utiliza da metáfora da doença para falar de solidão. O trecho do filme "The Wall" que foi agraciado com essa trilha sonora mostra um menino, um rato, e o próprio menino já crescido. Os três estão em momentos de fraqueza física. O menino é tratado com desleixo pela mãe quando está mal; esse mesmo menino trata com carinho um rato que ele encontra doente e que, no entanto, morre; depois, já adulto e junkie, o menino recebe cuidados, mas por simples interesse pragmático, afinal, "the show must go on". O remédio para esse garoto, então, é se isolar, não se permitir sentir mais nenhum tipo de "fraqueza", ficar dormente, insensível.



C'est l'Ennui ! - l'oeil chargé d'un pleur involontaire...
Charles Baudelaire

Leonardo Ramos.

Informações importantes

Leia com atenção:

1) Albergue não é hotel. É uma hospedaria tosca de alta rotatividade. Dito em outras palavras, não quero expulsar ninguém por ter de ver a cara por mais de três dias seguidos;

2) Ninguém é obrigado a se socializar aqui, nem eu mesmo. Agora, se entrou na conversa, seja cordial, não imponha seu ponto de vista, não ironize o que você não entende, não dê uma de sabichão, não arrote enquanto outros estão se alimentando, não seja um bêbado amoroso e chato;

3) Quem escolhe a música que toca aqui sou eu, o que não quer dizer que você não possa SUGERIR alguma bela canção que você queira escutar;

4) Estão proibidas falas emeesseênicas ou miguxescas. Fale como gente. Se você quer xingar muito no twitter, seu lugar é com esta turminha: http://www.youtube.com/watch?v=tqp3PKQuYDg

5) O estabelecimento não é tão bonito e cheiroso quanto o OuroMinas, o que não quer dizer que você possa jogar o lixo no chão;

6) Paulo Coelho et caterva não é Literatura, não aqui neste estabelecimento. Você será sumariamente EXPULSO se entrar com isso aqui;

7) Fiado? Volte amanhã. Isso se aplica especialmente às conversas;

8) Futebol é permitido como ASSUNTO se você souber discutir sem puxar a faca para o torcedor adversário. Como ESPORTE é terminantemente proibido, pode quebrar alguma janela;

9) Já disse isto alhures, mas vou repetir: mensagens edificantes edificam minha ira. Então, reflita bem antes de começar com essa conversa mole por aqui que, sendo a ira um pecado capital, você pode "estar precipitando" uma alma no inferno na intenção de ajudá-la;

10) Não gostou?, vá embora.

Isso posto, seja bem-vindo, mas não se demore.

Hermes.

domingo, 5 de dezembro de 2010

O Albergue está abrindo as portas

Ay, in the very temple of Delight, veil'd Melancholy has her sovran shrine.
John Keats

Domingo é um péssimo dia para um ex-católico.

O que outrora era um dia de graça benfazeja tornou-se o dia da angústia.

A angústia, no entanto, é a certeza de que se está no caminho certo. Sem arrependimentos. Ex-católicos não sentem [mais] culpa.

Então, eu resolvi fazer valer meu domingo, não contribuindo com os outros seres humanos, que isso não me interessa, nem fazendo algo útil, porque não sei fazer nada útil. Sou um platônico, o mundo físico e o que o torna útil simplesmente não me interessam.

Resolvi fazer valer meu domingo abrindo um albergue, onde eu posso ser autocrático - porque é MEU estabelecimento - e ainda lucrar alguma coisa com isso.

Este é meu segundo albergue. O primeiro, eu o abri no Orkut, aquele lugar que detesto hoje em dia. Este segundo terá, mais ou menos, a mesma decoração - nenhuma - que o anterior, mas com a vantagem de que está mais bem localizado. Aqui a vista é mais desoladora.

Aqui o vinho é quente, a música, alta, os livros, grandes, a melancolia, constante, a solidão, presente.

Entre quem quiser. E, por favor, não entre se você não quiser.

Ass.: Hermes, o dono da bodega.