segunda-feira, 30 de julho de 2012

Playlist da semana

Bom dia, caros hóspedes!

Hoje a nossa playlist conta com músicas de raízes medievais, seja somente na letra - como é o caso de "Love song", da Legião Urbana - seja no conjunto letra e música. Ofereço a vocês também os poemas que deram origem a elas. Vale a pena ler e pesquisar! As canções medievais são muito ricas em metáforas.

A música do Nick Drake, "Clothes of sand" não é originalmente medieval, mas entrou aqui por ter uma estrutura muito próxima do gênero - poderia apostar que o Drake quis fazer um pastiche -, tanto musical como poeticamente, apesar de alguns elementos que são estranhos à época. Há, inclusive, uma versão com arranjos à maneira celta feita pela banda Déanta.

No caso de "Black is the color of my true love's hair", "Scarborough fair" e "Love song", o poema é bem maior do que o da versão de Nina Simone, Simon e Garfunkel e Legião Urbana, respectivamente. Coloquei essas outras versões porque elas contêm belíssimas passagens. Como a autoria não era uma questão importante ainda no medievo, não se pode falar em "versão original". Por isso, também a atualização que fazem todas as versões apresentadas aqui é um aspecto importante para se apreciar.

1) Nick Drake - Clothes of sand



Who has dressed you in strange clothes of sand?
Who has taken you far from my land?
Who has said that my sayings were wrong?
And who will say that I stayed much too long?

Clothes of sand have covered your face
Given you meaning, taken my place.
So make your way on, down to the sea -
Something has taken you so far from me.

Does it now seem worth all the colour of skies
To see the earth through painted eyes?
To look through panes of shaded glass?
See the stains of winter's grass?

Can you now return to from where you came?
Try to burn your changing name?
Or with silver spoons and coloured light
Will you worship moons in winter's night?

Clothes of sand have covered your face
Given you meaning, taken my place.
So make your way on, down to the sea -
Something has taken you so far from me.

2) Nina Simone - Black is the colour of my true love's hair



But black is the colour of my true love's hair.
His face is like some rosy fair,
The prettiest face and the neatest hands,
I love the ground whereon he stands.
I love my love and well he knows,
I love the ground whereon he goes,
If you no more on earth I see,
I can't serve you as you have me.

The winter's passed and the leaves are green,
The time is passed that we have seen,
But still I hope the time will come
When you and I shall be as one.

I go to the Clyde for to mourn and weep,
But satisfied I never could sleep.
I'll write to you a few short lines,
I'll suffer death ten thousand times.

So fare you well, my own true love
The time has passed, but I wish you well.
But still I hope the time will come
When you and I will be as one.

I love my love and well he knows,
I love the ground whereon he goes.
The prettiest face, the neatest hands,
I love the ground whereon he stands.

3) Simon & Garfunkel - Scarborough fair



BOTH

Are you going to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Remember me to one who lives there,
For she once was a true love of mine.

MAN

Tell her to make me a cambric shirt,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Without any seam nor needlework,
And then she'll be a true love of mine.

Tell her to wash it in yonder dry well,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Which never sprung water nor rain ever fell,
And then she'll be a true love of mine.

Tell her to dry it on yonder thorn,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Which never bore blossom since Adam was born,
And then she'll be a true love of mine.

Ask her to do me this courtesy,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
And ask for a like favour from me,
And then she'll be a true love of mine.

BOTH

Have you been to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Remember me from one who lives there,
For he once was a true love of mine.

WOMAN

Ask him to find me an acre of land,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Between the salt water and the sea-sand,
For then he'll be a true love of mine.

Ask him to plough it with a lamb's horn,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
And sow it all over with one peppercorn,
For then he'll be a true love of mine.

Ask him to reap it with a sickle of leather,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
And gather it up with a rope made of heather,
For then he'll be a true love of mine.

When he has done and finished his work,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Ask him to come for his cambric shirt,
For then he'll be a true love of mine.

BOTH

If you say that you can't, then I shall reply,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
Oh, Let me know that at least you will try,
Or you'll never be a true love of mine.

Love imposes impossible tasks,
Parsley, sage, rosemary and thyme,
But none more than any heart would ask,
I must know you're a true love of mine.

3) Legião Urbana - Love song



Pois nací nunca vi Amor,
e ouço del sempre falar.
Pero sei que me quer matar,
mais rogarei a mia senhor
que me mostr'aquel matador,
ou que m'ampare del melhor.

Pero nunca lh'eu fige ren
por que m'el haja de matar;
mais quer'eu mia senhor rogar,
polo gran med'en que me ten,
que me mostr'aquel matador,
ou que m'ampare del melhor.

Nunca me lh'eu ampararei,
se m'ela del non amparar;
mais quer'eu mia senhor rogar,
polo gran medo que del hei,
que mi amostr'aquel matador,
ou que mi ampare del melhor.

E pois Amor ha sobre mí
de me matar tan gran poder,
e eu non o posso veer,
rogarei mia senhor assí
que mi amostr'aquel matador,
ou que mi ampare del melhor.

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Leto.

domingo, 29 de julho de 2012

Caverna

Este é o terceiro dia que estou nesta caverna. Aqui não há nem uma nesga de luz do sol. A escuridão é plena e profunda. E, no entanto, eu enxergo bem.

Estou aqui porque, lá fora, desde que eu alcancei este monte, fugido de onde eu vivia, há uma águia prestes a me devorar. Cá dentro, há outros animais, mas eles, até agora, não me fizeram mal algum. Cobras, morcegos e ratos me fazem companhia. Animais cegos ou quase, mas que se saem muito bem nas trevas, enquanto aves de rapina como a águia não sobreviveriam nessas condições por muito tempo. É interessante: a luz não nos ajuda a enxergar. Quanto mais luz, menos visão.

Você tem uma visão muito pessimista da vida, a minha amada me dizia sempre. Que eu via o mundo em tons muito obscuros. Que não me abria para a esperança. Segundo ela, o mundo não era assim. Segundo ela, havia nos homens uma inclinação natural para o bem. O que havia de escuro neles poderia ser redimido se fosse bem iluminado. E vinha com vários exemplos, os quais não lembro - nem sei se os escutava. Ao final, eu dizia, sempre - você, meu bem, é minha esperança. Eu dizia também, sempre, que, quando o homem saiu da caverna, ele recebeu dos deuses um presente, uma caixa. Dentro dela havia a inteligência. A esperança, porém, não estava lá, porque os deuses não sabem o que é isso. Um deus não precisa esperar por nada, não há tempo para imortais.

Para os mortais, sim, há um tempo. E ele é inexorável.

Ela, então, com seu sorriso encantador de sempre, replicava que eu havia caído em contradição. Se eu já havia dito que ela era minha esperança, como eu poderia depois afirmar que os deuses não haviam criado a esperança? Eu sorria e dizia que não havia sido contraditório. Não foram os deuses que criaram a esperança. Fui eu. Ela gargalhava e me chamava de megalomaníaco. Mas eu não sou megalomaníaco. Nunca quis ser um deus nem tenho vocação para ser herói. Meu ódio não permite um ato de heroísmo.

O ódio não cega como dizem. O ódio, assim como a escuridão, ajuda a enxergar melhor. Por exemplo: o ódio do homem que matou a minha amada o fez preparar tudo com cuidado, fê-lo ver tudo com antecedência. Ele a observou por muito tempo. Sabia de sua rotina, de seus gostos, de seus medos. Sabia que era ela a minha esperança. Sabia que era ela todos os meus tesouros, toda a minha vida. Sabia que era ela todo o meu sorriso e o meu bem.

Meu bem - eu dizia a ela, sempre -, o que há de mais humano é o ódio. Os animais não sentem ódio. É preciso ter inteligência para odiar. Eles sentem fome ou medo. O ódio é um sentimento, um sentimento que consome como uma chama. O ódio, eu dizia, é como uma fogueira dentro de uma caverna: ela ilumina e faz com que saia todo tipo de animal pestilento e peçonhento, como cobras, morcegos e ratos. E é só nesse tipo de iluminação que eu acredito. Ela, então, olhava para mim, com seus olhos hipnotizantes, e se dizia triste com isso. Eu sorria e a beijava.

O homem que a matou também a beijou. Ele a amava. Mas não foi o amor por ela que venceu. Foi o ódio por mim que o levou a trucidá-la como fez, sem misericórdia alguma. Porque ele sabia muito bem que era ela todos os meus tesouros. Antes odiar-me que amá-la. Esse ódio, provavelmente, o fez feliz, ainda que por pouco tempo. Sobre ela - na verdade, sobre mim -, ele despejou toda a sua pestilência, toda a sua peçonha, todo mal que havia dentro de si. E isso ficou bastante claro no corpo da minha amada. Quando eu entrei no cômodo em que seu corpo jazia, eu busquei um pouco de luz. Antes fosse cego. Junto ao seu corpo desfigurado, estava também o dele. Não tive outra reação senão a de correr. Deixei os corpos como estavam e fugi.

Eu poderia despejar meu ódio sobre meu próprio corpo, mas não quero me igualar a ele. Eu gostaria de poder fazer meu ódio subir aos céus como uma chama, votado inteiramente contra os deuses, mas eles não existem. Eu queria ser o próprio Lúcifer, o próprio fogo do tártaro, estalando de ira, pronto a sair do fundo das cavernas infernais para caçar os malditos deuses e, um a um, fazê-los sofrer por bastante tempo, até que implorassem por misericórdia. Mas não há tempo para imortais. Tampouco há deuses. E para os mortais, não há esperança. Há somente o tempo, inexorável.

Esta noite, acenderei uma fogueira nesta caverna para que saiam as cobras, os morcegos e os ratos. Criarei meu próprio deus, todo cheio de bondade e misericórdia, e eu serei seu rival, seu perfeito oposto. Eu lutarei contra ele com todo o meu ódio, por razão alguma, e serei vencido. E amanhã sairei também eu da caverna e entregarei meu corpo à águia que ele enviará para que eu seja devorado.

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Leonardo Ramos.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Playlist da semana

Sobre o frio.

1) Nick Drake - Day is done



"When the night is cold, some get by, but some get old, just to show life's not made of gold - when the night is cold."

2) Pink Floyd - Wot's... uh the deal



"It's time to let me in from the cold. Turn my lead into gold, 'cause there's a chill wind blowin' in my soul and I think I'm growin' old."

3) Portishead - Western eyes



"I feel so cold on hookers and gin - this mess we're in."

4) Damien Rice - Cold water



"Cold, cold water surrounds me now, and all I've got is your hand."



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Leonardo Ramos.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Playlist da semana

Love's labour's lost.

1) Elis Regina - Atrás da porta



2) Sinéad O'Connor - Nothing compares 2U



3) Nick Cave & The Bad Seeds - Into my arms



4) Damien Rice - The Blower's Daughter



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Hermes.

sábado, 7 de julho de 2012

Fonte

Quatro vezes fui à fonte para matar minha sede em águas límpidas. A água não manava da mesma forma as quatro vezes, não era a mesma água nas quatro vezes. O desenho das nuvens no céu não era o mesmo as quatro vezes. Eu não pisei exatamente no mesmo sulco que meus pés abriram as quatro vezes. A sede não era a mesma as quatro vezes. Eu não me dobrei da mesma maneira as quatro vezes. Em cada vez, eu era mais velho. Em cada vez, a água molhou meus lábios de forma diferente. Em cada vez, fazia mais calor, ou mais frio, ou chovia, ou era noite. As quatro vezes eu matei minha sede, que não era a mesma, de maneiras diferentes, na água que não manava da mesma forma, na fonte que era a mesma.

Quatro vezes eu fui à fonte da memória.

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Leonardo Ramos.