terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Carvalho

Quando nasceu, ninguém pôde perceber que não tinha boca. Eurídice estava transportada de felicidade de dar à luz seu primeiro e talvez único filho, dada sua idade avançada. O médico, preocupado com que o menino não chorasse, bateu bastante nele. Só então deu-se conta do fato: não tinha boca. Nunca havia visto isso antes. A ausência total de qualquer relato sobre essa doença na literatura o fez tomar uma decisão: deixar mãe e filhos ligados pelo cordão umbilical. O pequeno não poderia comer, pois não tinha boca, e o cordão serviria de acesso do alimento através da mãe.

O pai mal pôde conter sua euforia quando viu o bebê. Era a sua cara. Era, em tudo, igual a ele, menos a boca, que não tinha. Mas Orfeu não chegou a perceber que seu filho não tinha boca. Tomou-o por um menino bonzinho, que não chorava por nada, e que tinha uns olhos vivos. “É a minha cara”, repetia o pai, orgulhoso. “Vai ser carpinteiro, como eu; casar-se e ter um filho lindo, como eu”.

Pai e mãe jamais entenderam que o filho não tinha boca. Socava-lhe a mãe o seio naquele espaço contínuo entre o nariz e o pescoço onde deveria estar... a boca. Obviamente, o bebê não sorvia nada, e a mãe o julgava satisfeito. O médico lhe havia explicado que o menino nascera sem boca, mas ela não escutou. Nem mesmo enxergava o defeito no filho.

A mãe, porém, alimentava-se bastante. Sentia muita fome, e parecia jamais estar saciada. Emagrecia desde que dera a luz. Mas isso não importava. Importava o filho primeiro e talvez o único. O pai se enchia de orgulho de ver o filho “forte”, o que queria dizer gordo. Aquela criança, agora com quatro anos, pesava trinta quilos. Mas não falava. Seus pais nunca se preocuparam com isso. “É quieto assim mesmo”, dizia a mãe. “Puxou o pai...”

Com oito anos, aprendeu a andar. Era lindo vê-lo trôpego e gordo, ensaiando seus primeiros passos. Contudo, parecia não ter muito gosto por andar. Não saía de perto da mãe, e isso a enchia de orgulho. “Não pode ir a lugar nenhum sem que eu vá junto!”, dizia ela às amigas. Era assim, de fato. Mas o fato era que o menino estava ligado à mãe.

Havia outros meninos, na vizinhança, que vinham visitá-lo sempre. Mas a criança não dava muita atenção a eles. Parecia não se importar com sua presença; os meninos brincavam, corriam, pulavam, quebravam as coisas, e o menino só olhava. O pai cutucava seus amigos, dizendo: “É um observador. Vede como brinca: brinca de estudar os amigos...”.

Na verdade (preciso dizer), ao menino não fazia sentido algum a fala. Não causava nele nenhuma impressão. Ele escutava, mas era tudo barulho. De fato, a única coisa que ele percebia era que aquelas pessoas eram parecidas com ele, exceto por aquela abertura esquisita entre o nariz e o pescoço. Nele, havia apenas um espaço contínuo. Nem maxilar, nem queixo, nem lábios. Um espaço contínuo entre o nariz e o pescoço.

Quando completou dez anos, o médico, que os visitava toda a semana, cortou o cordão umbilical. Isso foi pelo fato de que o menino já estava com cinquenta quilos. Obeso. O médico temia por sua saúde. Os pais, não. Para eles, o menino era perfeito. E que olhos expressivos! Negros, muito negros, ou, antes, ausentes completamente de cor. Quando o médico desligou mãe e filho, o menino parecia muito bem, apesar do peso extremo.

No dia seguinte, ei-lo andando. Andava e tocava tudo, tentando achar, em todas as coisas, um orifício, um espaço. Encontrou um: a porta da rua, que estava sempre aberta. (Orfeu e Eurídice não gostavam de lugares fechados; recintos assim lembravam caixão, morte...). O menino saiu sob a fala do pai: “Vai, meu pequeno; vai brincar”. O pequeno nunca mais voltou.

Orfeu e Eurídice não deram, jamais, falta do filho. Sentiam falta de alguma coisa, mas era um sentimento vago, como se a casa estivesse muito fechada. Mandaram fazer mais duas janelas e uma porta no meio. A falta passou. Tanto as janelas quanto a porta voltadas para um pequeno jardim que cultivavam no fundo da casa. Cada qual – Orfeu, à esquerda e Eurídice sentada à sua direita – ficava numa janela, às tardes, olhando para o carvalho que secava mais atrás.

O menino estava com quinze anos. Havia cinco morava na rua. Não propriamente na rua: no esgoto, numa ruína, ou em buracos de sítios despovoados. Gostava do espaço. Acho que era feliz. Não tenho certeza, pois não sorria. Nunca. Mas gostava de olhar. Um dia, um homem rude cismou com ele, porque não parava de olhá-lo. O homem talvez se chamasse Ares. Ares perguntou-lhe o que havia; como o rapaz não lhe respondesse, espancou-o, pensando que o menino troçava com ele. “Fala! Fala!”, gritava o homem rude, enquanto batia. Mas como um cordeiro que se cala diante de seu tosquiador, ele não abriu a boca. Não tinha boca.

E, já com vinte anos, estava quase seco. Não pesava mais que vinte e três quilos. Como estava sempre em um espaço diferente, nunca era conhecido ou reconhecido. Não podia ser relembrado, porque lhe perguntavam o nome, mas ele não dizia nada. Não tinha boca. Achavam-no idiota, e o deixavam logo em seguida. Um dia, porém, tropeçou num cadáver de um indigente, que havia se matado cortando a garganta com um pedaço de vidro. O rapaz tateou o pescoço do mendigo, depois a boca, semi-aberta num aparente sorriso de gozo. Achou a boca daquele homem (que, provavelmente, se chamava Apolo) a coisa mais linda que já tinha visto. Viu sua imagem no caco de vidro. A superfície côncava e refletora daquele objeto fez com que ele sentisse ainda mais a diferença entre eles: Apolo tinha boca; ele, não tinha boca.

Pegou, então, do vidro que jazia na mão de Apolo e, medindo três dedos abaixo do nariz, passou com força a ponta aguda do caco, abrindo seu próprio pescoço. A agonia, antes da morte, durou até às nove e meia da noite de seu vigésimo ano de vida. Ele, no entanto, sorria, e o sangue, borbulhando, produzia aquilo que podemos chamar de seu primeiro som. Parecia que dizia “eu... eu... eu...” Seus pais se orgulhariam se pudessem ver ali o seu único e talvez primeiro filho.

Leonardo Ramos.

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