quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Playlist da semana

Em homenagem ao Josias Ramos, que faria 61 anos este mês e gostava de samba.

1) Toquinho e Vinícius - Chega de saudade



2) Baden Powell - Samba em prelúdio



3) Roberto Ribeiro - Todo menino é um rei



4) Paulinho da Viola - O filho que eu quero ter



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Leonardo Ramos.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Sobre estragos sutis

(Trilha sonora obrigatória: Estragos Sutis, Pelos. O texto é escrito como um diálogo com a letra da música)



"O que o traz, passado? Por que se faz presente assim? O modo errado ao te enterrar?"

Este mês completam-se vinte e seis anos da morte de Josias Ramos, meu pai. Em agosto 1986, voltando do horário de almoço para a Telemig, onde ele trabalhava, ele bateu na traseira de uma carreta com seu chevette branco na Av. Cristiano Machado, perto do túnel, bem perto de onde a gente morava. Ele morreu no caminho para o hospital. Minha mãe, no dia do enterro, me perguntou se eu queria ir ao funeral, mas eu não quis. Eu tinha cinco anos e, se vocês me perdoarem a imodéstia (ela tem uma função no desenrolar da história), bastante inteligente. Havia aprendido a ler com três anos e a escrever com quatro, sozinho. As pessoas ao meu redor se impressionavam tanto com essa "inteligência" que imaginaram, penso eu, que eu superaria bem essa perda. Afinal, também, como eu era muito novo, eu não devia entender muito bem o que era morrer. Para me dar uma força, elas me diziam: "agora você é o homenzinho da casa!", "agora você tem de cuidar da sua mãe e dos seus irmãos mais novos."

A minha mãe, como toda esposa que perde o marido a quem amava, especialmente de maneira tão repentina, desmoronou, obviamente. Eu tenho as memórias vivas dos momentos de luto dela, como da vez que ela chorava olhando pela janela de onde a gente via meu pai saindo para viajar, com sua bolsa bege a tiracolo, acenando para a gente até desaparecer na esquina. Chorando e pensando, provavelmente, em se jogar dali, como mais tarde ela confessaria. Lembro vê-la encolhida no sofá da sala da casa da minha avó, mãe dela, depois que a gente saiu de Belo Horizonte para ir morar em Bom Despacho. Nessa memória, em especial, lembro também ter perguntado a ela porque chorava, já cumprindo a missão que me tinham dado - de cuidar dela.

"E o que se traz por trás do véu o seu semblante não mostrou. Certos gestos são palavras no ar..."

Mas como cuidar de alguém que está em luto se você mesmo também perdeu alguém importante? Meu pai morreu num tempo em que toda criança enxerga os pais como heróis supremos, perfeitos, que não permitem que nada de mal aconteça. Eu tinha perdido um dos meus heróis, e a outra heroína parecia estar derrotada para sempre. Como erguer do chão uma heroína quando você tem cinco anos apenas e não há mais nenhum herói para ajudar? Tentando ser um. Meu plano era simples: primeiro, minha mãe não deveria me ver chorando, pois ela poderia ficar ainda mais triste. Então, como "missão dada é missão cumprida", eu me escondi por trás do véu do pequeno prodígio de inteligência e de religiosidade, já muito maduro para entender que meu pai não voltaria mais e que então eu deveria ocupar o lugar dele como o esteio psicológico dessa família que ele deixou. Depois, se eu conseguisse afastar dela todo tipo de sofrimento ou frustração, tudo estaria bem, e o Josias seria uma bela lembrança de uma família feliz.

Muito bem planejado de minha parte, especialmente contando com apenas cinco anos! Eu realmente era um pequeno gênio... (Essa imodéstia é pura vaidade mesmo, não tem nenhuma influência na história.) Porém, todo gênio tem sua fraqueza, e a minha foi superestimar a minha própria genialidade: o plano era impossível de ser executado, até mesmo por mim. Não há como afastar toda fonte de sofrimento de alguém. E algumas vezes, eu mesmo era a fonte de insatisfação para ela, porque, enfim, ninguém é perfeito, nem mesmo eu. E aí, o que você faz quando você, por um motivo banal como lavar a louça do almoço, faz sua mãe chorar, sua heroína que está tentando se levantar e contava com sua ajuda? Vai para o banheiro - afinal, ela jamais deve vê-lo chorando - e implora ao deus em que você cria que o matasse, porque você não era corajoso o bastante para se suicidar?

"Eu peço à Sombra, eu peço à Sombra para não me assombrar!, para não me assombrar! Eu peço à Sombra, eu peço à Sombra para não me assombrar!, para não me assombrar!, para não me assombrar!"

Por mais ou menos vinte anos eu quase não falei no nome dele, eu quase não pensei nele e, quando me perguntavam sobre ele, eu dizia que tinha superado. Que fazia falta sim, mas que estava tudo bem. Mas eu sonhava - e ainda hoje sonho - que ele estava voltando para casa no fim da tarde, como sempre fazia, e ia montar um castelinho de peças de madeira, com um pato donald no centro segurando um toquinho cilíndrico de madeira fazendo as vezes de cetro. Um castelo que eu, às vezes, derrubava, pra ter o gosto de vê-lo montando de novo. Havia um edifício em forma de castelo também no caminho da casa do pai dele, que a gente costumava visitar de vez em quando, no chevette branco, ao som de Toquinho, Vinícius, Chico, Beth Carvalho e todos esses sambas bons que ele me ensinou a gostar e que ele costumava tocar - inclusive aquela, que eu adorava pedir: "papai, canta aquela que você fala que tem mais peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que você vai dar na boca da mamãe?" E aí ele começava a tocar e cantar, naquele Tranquillo Giannini lindo que ainda existe: "Vai, minha tristeza..."

Mas e quando a barba começa a crescer, e seu semblante começa a parecer tanto com o dele a ponto de uma tia se assustar achando que estava vendo o Josias? Obviamente eu fico extremamente orgulhoso quando me dizem que eu me pareço com ele. Ele era meu herói! Mas o fantasma dele está aí sempre para me relembrar de que eu não sou ele. Eu não sou o esposo da minha mãe (o texto é meu, Freud!), eu não sou o pai dos meus irmãos, eu sou no máximo um filho que se parece muito com ele. Isso não me dá credenciais para suportar tudo o que eu tentei suportar em vinte e seis anos. Todos os anos de tortura nos colégios por que eu passei, porque eu era sempre um ano mais novo (o pequeno gênio aqui, por já saber ler e escrever, fez o pré-primário e a primeira série em um ano apenas, ficando sempre mais jovem que os demais colegas), porque eu era fracote, porque eu era nerd, porque eu era calado, porque eu era feio. E eu chegava em casa e... não contava nada para minha mãe, porque, enfim, ela sofria muito mais do que eu, tendo de trabalhar o dia inteiro para nos criar sozinha. Eu não podia perturbá-la só porque tinha apanhado na escola, ou porque a menina que eu admirava veio dizer que gostava de mim para me pregar uma peça e deleitar os demais. Isso não chega aos pés do sofrimento de perder o marido que ela amava num acidente de carro. Seria muita frescura minha chorar por causa disso.

"Movido a sonhos surreais, a minha mente repousou num canto oposto a tudo seu."

Nunca tive essas fantasias babacas (com o perdão para quem as tem) de: "ah!, eu queria ter apresentado a minha primeira namorada pra ele...", "ah! eu queria ao menos ter dito adeus..." e demais mimimis. Eu queria o Josias aqui para rivalizar com ele. (Pode voltar agora, Freud!) Para brigar com ele. Para discordar dele e dizer que ele estava errado sobre qualquer bobagem do cotidiano. Porque é para isso também que os pais servem: para ser um contraponto nosso. Para ir nos ajudando, em cada conflito, a entender quem nós somos. Para mostrar que somos todos humanos, todos cheios de misérias, fracassos, maldades, perversões. Para mostrar que não existem heróis nesse mundo, que somos naturalmente iguais e que o que existe é a força de vontade, a luta, o suor, o sofrimento pra conquistar o que se quer. Porque é somente quando criança que a gente acha que nossos pais são realmente perfeitos. E não há mal nenhum quando acontece a desilusão, pelo contrário!, é aí que a gente começa a dar valor aos atos de bravura dos não heróis, como os da minha mãe, por exemplo, ao longo desses anos. Não, eu queria o Josias aqui para me chocar com ele, como o mar em ressaca se choca com a rocha.

Mas ele morreu numa época em que eu o via como perfeito, e os relatos de quem conviveu com ele não ajudam muito também. Ninguém me aparece com um podre, com uma coisa ruim que ele fez. Nada. O homem devia ser um anjo, só pode. Há momentos em que eu chego a duvidar que ele existiu. Parece, de vez em quando, que foi tudo um sonho. E isso é de enlouquecer, de enlouquecer. A cabeça dá um nó, os sentimentos se misturam, e já não se sabe mais o que é real e o que não é. É especialmente desesperador quando se acorda sonâmbulo na madrugada procurando cadáveres pelo quarto ou vermes na sua cama. A sensação de terror e o choro são realíssimos, e leva bastante tempo, após ter revirado o quarto inteiro, para entender que o cadáver insepulto está na sua mente. Essa, talvez, seja uma prova da existência dele. A outra pode ser a que meu irmão disse, uma vez. Meu irmão não se lembra dele, e às vezes tem a mesma impressão que eu, de que ele não existiu. "Eu sei que ele existiu porque ele me faz falta.", foi o que ele disse.

"Não se preocupe, um dia a gente se consola e chora sem história pra contar."

A vida é narrativa. Só faz sentido participar de um momento bom, agradável, de felicidade ou de vitória se depois a gente puder falar sobre ele. Mesmo os de tristeza: é com a sua narrativa que é possível vivê-los plenamente. Eu tenho poucas memórias do Josias, mas algumas são bem claras. Uma delas é dos domingos. Aos domingos, de vez em quando, a gente ia ao Parque Municipal pela manhã. Na ida, meu pai acelerava um pouquinho mais para passar naquela sequência de morro e reta da Francisco Sales, para dar a sensação do tobogã, que era maior naquela época, porque não havia ainda o viaduto. Chegando no parque, íamos andar em alguns brinquedos e estender uma toalha sobre a grama e deitar. Eu tinha alguns livrinhos que eu adorava, dos quais eu já lia algumas palavras, e outros que minha mãe lia pra mim. Depois, a gente ia almoçar n'O Laçador, e um dos garçons de lá era especialmente gentil comigo. Uma das vezes, meu pai me carregou até o caixa, e esse garçom me entregou um desenho de dois pinguins copiados da garrafa de Antártica. Eu fiquei felicíssimo com o presente! Isso porque havia uma música do Vinícius para crianças, uma fita K7 da Arca de Noé, e um trecho da música "O Pinguim" dizia assim: "Quando você caminha/ Parece o Chacrinha/ Lelé da caixola...". Meu pai me chamava de "Leléo da cuca"...

No final dessa fita, havia uma música, muito bonita mas muito triste, que ele costumava cantar para mim. Falava sobre alguém que sonhava com um futuro filho. A última estrofe era assim: "Quando a vida, enfim, me quiser levar, pelo tanto que me deu, sentir-lhe a barba me roçar num derradeiro beijo seu. E ao sentir também sua mão vedar meu olhar dos olhos seus, ouvir-lhe a voz a me embalar num acalanto de adeus. Dorme, meu pai, sem cuidado, dorme que ao entardecer teu filho sonha acordado com o filho que ele quer ter."

"E o que eu faço agora com as promessas que você deixou num canto escuro aos tratos de ninguém?"

Em Índios, Renato Russo diz: "E é só você que tem a cura pro meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi". É sim, pai, você é o único que tem essa possibilidade de matar a saudade de tudo o que eu não vivi com você, de todo futuro preso no tórax esmagado pelo parachoque de um caminhão. Não tenho esperança nenhuma mais de qualquer coisa além desta vida material, então eu acho que essa é uma saudade que não é passageira. E eu estou conversando não com você, porque já não pode mais me ouvir chamando-o de "bem", que era como você chamava a mamãe e a mamãe o chamava e eu imitava; eu estou conversando comigo mesmo, com esse homem de trinta e um anos que eu me tornei, de barba, como você costumava ficar quando a vovó não reclamava, e com essa criança de cinco anos, muito inteligente, mas muito frágil, que ainda insiste comigo que eu devo engolir o choro, porque já faz muito tempo, porque nem é tanto sofrimento assim, porque eu tenho de cuidar dos meus irmãos, porque a mamãe não pode ficar triste.

Mas, sabe?, ela fica triste do mesmo jeito, não só por causa disso, mas por causa das pequenas ou das grandes dificuldades da vida, como todos ficamos tristes. E meus irmãos já são adultos, não precisam mais de que eu cuide deles. Então, pai, mãe, irmãos, eu mesmo e todas as pessoas à minha volta, perdoem-me por decepcionar vocês, mas agora eu só quero tirar essa máscara de adulto e chorar, chorar, chorar, chorar todos esses vinte e seis anos de tristeza sufocada e solitária, desse sentimento de ausência irremediável, de vazio, de luto.

"A falsa frente se desfigurou."



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Leonardo Ramos.