terça-feira, 12 de julho de 2011

Balanço (ensaio sobre um motivo fotográfico)

Foto: Leonardo Ramos


Sou um observador fantasmático das pessoas. Não que eu esteja morto, ou que seja algum tipo de entidade sobrenatural que já pertenceu a um corpo físico. Sou uma pessoa comum, com a vantagem de ser pouco notado pelas outras pessoas comuns.

Costumo parar ao pé de uma árvore seca ou ficar escorado num muro mal-acabado. Fico aí, estático, a ver a procissão dos humanos, carregados em suas preocupações diárias, supérfluas ou importantes, e faço minhas leituras de suas marcas. Sem julgamentos, claro, porque sou um deles, um humano carregado em minhas preocupações diárias, supérfluas ou importantes, e eu também costumo fazer minhas próprias leituras de mim mesmo. Sem julgamentos, claro.

Dias atrás, calhou de eu estar num parque ecológico onde, como sói acontecer, além de árvores e muito verde, há também brinquedos. Brinquedos simples, diferentemente daqueles que estão nos parques de diversões, repletos de botões, engrenagens, assentos, movimentos. Os brinquedos dos parques ecológicos estão mais de acordo com a simplicidade do local.

Nesse parque, então, havia balanços, os favoritos das crianças. Porque, se há uma coisa que um ser humano se ressente de deus é de não poder voar. E se tem um ser humano que mais se sente magoado com essa terrível falha divina é a criança. E lá estão elas, sentadas sobre aquela fatia de madeira retangular, nem sempre bem-trabalhada, suspensa a poucos centímetros do chão por duas correntes, estas presas a um suporte de aço muito bem fixo. Tudo muito rijo – parece –, tudo muito estático. Mas aguarde um balançar de pernas, e outro, e outro agora mais forte, junto com o movimento brusco do tronco para trás: eis o balanço exercendo sua função de dar a ilusão do voo livre.

Nesse dia, não faz muito tempo, os balanços estavam estáticos, à espera da criança para os fazer reviver. No entanto, é uma mulher que desta vez se aproxima: vestido negro, uma bolsa grande, carregada, uma maneira de andar de quem sabe o que quer, um olhar austero e hipnotizante. Sem titubear, deixou sobre um dos balanços sua bolsa grande, carregada – de pensamentos vários, de preocupações inadiáveis, de pequenas conjecturas que escondem grandes decisões, de amores e de amados e de amantes, de filosofia e de necessidades naturais.

Sentou-se no outro balanço. Começou o baile das pernas, para frente e para trás. O tronco, movimentando-se com força para trás, deu ao balanço, num instante, a altura e a velocidade necessárias para o voo imaginário. Interessante como um brinquedo supostamente feito para crianças funciona tão melhor com um adulto, tão carregado, tão cheio de pensamentos vários, de preocupações inadiáveis, de pequenas conjecturas que escondem grandes decisões, de amores e de amados e de amantes, de filosofia e de necessidades naturais.

Mas, muito provavelmente, junto com os movimentos da perna e do tronco, aquela mulher deixou também que a mente balançasse no voo imaginário, guardando os pensamentos, as conjecturas, os amores naquela bolsa estática sobre o estático balanço. Talvez por isso ela tenha alcançado os mais altos céus, lá onde os pássaros costumam planar, mais pesados do que o ar, mas aptos a usar desse mesmo ar – invisível – como seu suporte. Talvez por isso seu sorriso dissesse de um prazer de quem, como uma ave, está pairando sobre o ar – ela mesma mais pesada do que ele, mas apta, agora, a permanecer sobre ele.

Seu voo durou alguns minutos. Mas considero quantos mundos de formas, cores e nenhuma correspondência com este mundo ela visitou. Deve ter planado sobre montanhas disformes, lagos coloridos, céus imensos, terras distantes.

Ao fim, pés no chão. O balanço, num movimento inconformado e desajeitado, para, mas conserva, um tempo ainda, um frêmito convulsivo e estranho. A mulher toma de volta, do outro balanço, estático, sua bolsa carregada. Retoma seu andar de quem sabe o que quer. Seu olhar, austero e hipnotizante, encara o caminho a seguir. Talvez ela tenha deixado cair um ou outro conteúdo de sua bolsa enquanto voltava pelo caminho. Não me importei, deixei-os lá. Deixemos que a terra, a poeira, o chão cuide do que é dele. Cuidemos nós de voar.

Leonardo Ramos.

2 comentários:

  1. Que texto belo, Léo! Com certeza funcionou como um balanço para mim também. (E espero que também o seja para outras pessoas!)

    Excelente!!!

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  2. Sou suspeita para falar... só tenho que confessar que fiquei impressionada com sua capacidade de ler mentes e adivinhar sentimentos... mesmo no vai-e-vem dos balanços...

    Foi um lindo presente, ao qual serei eternamente grata.

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