segunda-feira, 18 de abril de 2011

Sobre a trilha sonora possível para Belo Horizonte - Parte III




A questão da autoria da obra de arte mudou muito ao longo do tempo. Na Idade Média, especialmente no que se referia à música e à poesia, muita vez era impossível descobrir a autoria com plena certeza. A obra de arte não era ainda vista como a criação ex nihilo por parte de um gênio artístico, gênio este especialmente dotado de inspiração divina ou ao menos não natural. Esta era uma concepção que passou a existir com mais força a partir do Romantismo. Ao contrário, até a Idade Moderna, uma poesia era modificada livremente por cada leitor/escritor que achasse que deveria emendar ou contribuir, e isso, de modo algum, constituía uma afronta para as pessoas daquela época.

Com a invenção da imprensa por Gutenberg, no século XV, escrever se tornou uma atividade lucrativa para o autor e outras pessoas envolvidas no processo de publicação. Para que o retorno financeiro fosse assegurado, tornou-se necessário assegurar também a autoria da obra. A partir de então, o autor era o único responsável por qualquer modificação do texto que "genialmente" criara. Essa maneira de se encarar a criação artística se estendeu às demais formas de arte, de modo que a dúvida sobre a autoria passou a ser decidida nos tribunais se fosse preciso.

Estamos no século XXI, e a questão volta a ser debatida. Desta vez porque a maneira como os artistas costumavam ganhar seu pão de cada dia - vendendo livros, álbuns musicais etc. - foi acertada de cheio pela internet e pela facilidade que ela oferece para se compartilhar arte em formato digital. O mercado artístico está tentando se adaptar a essa nova realidade irrefreável pois, por mais que existam leis e punições previstas para esse tipo de compartilhamento, já não parece mais ser possível conter o oceano de páginas de downloads.

Um passo interessante - e inteligente - foi dado pela banda Radiohead que, em 2007, disponibilizou seu excelente álbum duplo In Rainbows para download, deixando para o usuário a escolha de quanto queria pagar, podendo até baixar de graça. Nessa atitude, o que está em jogo não é a questão da autoria - que permanece do Radiohead, sem sombra de dúvida; mas, sim, da suposta necessidade de venda de CD's para se viabilizar uma banda. Hoje, cada grupo musical tem procurado diversificar seus ganhos, já sabendo que não pode contar muito com a venda de material musical físico.

Nesse sentido, a criação do Creative Commons veio dar uma resposta inteligente às necessidades dos artistas. Em primeiro lugar, o nome do artista é respeitado como criador seja do que for; mas a possibilidade de compartilhamento e até de releituras daquela obra está também aberta - o que, na maior parte das vezes, pode ser de grande ganho para o próprio artista, que terá seu nome sempre circulando.

João Eduardo estava desperto para essa conjunção contemporânea ao criar seu Belo Horizonte - uma trilha sonora possível. A obra foi registrada como Creative Commons, e a ideia inicial dele era de que alguém aproveitasse aquelas músicas de sua autoria para compor a trilha sonora de um filme que falasse de Belo Horizonte, já que as músicas lhe foram inspiradas pelo ambiente da capital de Minas. Mas, como ele mesmo disse na palestra de lançamento do álbum, as músicas podem ser utilizadas para outros fins. E todos nós sabemos que, em termos de criatividade, a mente humana consegue sempre surpreender.

O interessante é que a autoria continua sendo de João, mas as possibilidades de contribuições, releituras, usos e compartilhamentos são incontáveis, o que só irá enriquecer o trabalho inicial. Assim foi, por exemplo, o trabalho de Tiago Capute para o encarte do CD. Capute fez a sua leitura, de designer gráfico e fotógrafo, para as músicas de João. O resultado é espetacular, como se pode comprovar no download de todo o material. As fotos e o trabalho gráfico, ao invés de restringir a interpretação do ouvinte, abre inúmeras outras portas de compreensão - mesmo no caso da escrita, por exemplo, da letra das músicas "Dando voltas" ou "Música triste", onde os espaços não esperados ou não "necessários" geram um efeito de vazio, de falta, de falta de direção ou da não linearidade da vida.

Afora essa já primeira intervenção gráfica, outras de outros tipos virão, com certeza. Eu mesmo, que me apaixonei pelo trabalho por tudo o que coincidiu com minha própria visão de BH, farei um poema baseado em uma das músicas da trilha, e prometo publicá-lo em breve aqui nesta casa.

De qualquer forma, ainda que nosso país, com a administração da nossa atual Ministra da Cultura, queira calar o diálogo sobre a criação contemporânea e as questões do compartilhamento da arte, as coisas acontecem de forma natural. Porque a evolução do mundo não está sujeita às leis, e o trabalho de João Eduardo está aí para reafirmar isso. E eu aproveito para reforçar o convite a conhecer o belo álbum Belo Horizonte - uma trilha sonora possível e a contribuir, da sua forma, com ele.

Leonardo Ramos.
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O link para baixar o trabalho é este: http://duasnoites.wordpress.com/2011/02/23/voce-baixe-aqui/

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