segunda-feira, 19 de março de 2012

Laetitia (Diálogo)

- Recolhe, Letícia, recolhe toda a areia da praia.

- Toda a areia? Impossível. Posso recolher bastante. Para que precisas?

- Para minha ampulheta. Bastante não é o bastante. Preciso de toda a areia.

- Como pensas colocar toda a areia desta praia em tua ampulheta?

- Não sei. Recolhe.

- Imaginando que pudesses - porque não podes! - guardar toda essa areia dentro da tua ampulheta: com que objetivo?

- Para que a areia deixe de escorrer pelo orifício estreito.

- Mas a areia na ampulheta só tem sentido se ela se mover de um espaço a outro, marcando o lapso de tempo. Não te entendo. Se queres que ela deixe de escorrer, ao invés de enchê-la com toda essa areia - o que é impossivel! -, esvazia-a.

- Mas então, Letícia, a ampulheta não teria areia. Estaria vazia. Eu é que não te entendo. De que me serve uma ampulheta vazia?

- Porém, permanece ainda uma pergunta: como pretendes guardar toda essa areia numa ampulheta tão pequena?

- Não sei, já to disse. Que uma coisa seja impossível de fazer não exclui o fato de que deva ser feita. Que a pedra não permaneça no alto do monte não impede que Sísifo a carregue permanentemente para o cume. Que não fosse possível que Psiché fugisse da sentença de Apolo não evitou que ela tentasse se esconder com Eros. Que ninguém tenha voltado do Hades não impediu que Orfeu tenha buscado Eurídice. Ainda que fosse impossível tirá-la de lá.

- Tu e tua religião órfica sem sentido...

- É a única possível.

- Vamos, então. Recolhamos toda a areia desta praia, antes que tenhamos de virar a ampulheta mais uma vez.

- Sabes que isso é impossível, não é, Letícia?

- Sei.

- Fico feliz! Recolhamos.

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Leonardo Ramos.

Um comentário:

O mural do Albergue não é quadro de mesa de sinuca. Pense antes de postar.